segunda-feira, 7 de maio de 2012

CIRCULAÇÃO FETAL




Fisiologia da Circulação Fetal e Diagnóstico das Alterações Funcionais do Coração do Feto

Sandra S. Mattos
Recife, PE


O feto cardiopata necessita de cuidados especiais. O útero materno, na maioria das vezes, é a sua melhor UTI. Neste, a temperatura ambiente é constante, nutrição parenteral é administrada com mínimos riscos, não há manuseio reduzindo a incidência de trauma e infecção, e, principalmente, no tocante ao aparelho cardiovascular, ele é mantido em circulação extracorpórea, utilizando o mais eficiente e seguro oxigenador de membranas: a placenta. A compreensão da fisiologia da circulação feto-materno-placentária é de fundamental importância na avaliação do comportamento das diversas alterações do sistema cardiovascular na vida intra-uterina.

Fisiologia da circulação fetal

A circulação fetal difere da extra-uterina anatômica e funcionalmente. Ela é estruturada para suprir as necessidades de um organismo em crescimento rápido num ambiente de hipóxia relativa. A única conexão e
Os pulmões fetais estão cheios de líquido, oferecendo alta res ]]> bypasses principais - o foramen oval, o canal arterial, a placenta e o ducto venoso, os ventrículos trabalham em paralelo. O sangue oxigenado proveniente da placenta chega ao feto através da veia umbilical. Esse sangue passa principalmente (45%) através do ducto venoso "bypassando" o fígado fetal 1. O sangue venoso portal se mistura com este e, conseqüentemente, o sangue da veia cava inferior é menos saturado do que o sangue da veia umbilical. Ainda assim, com aproximadamente 70% de saturação de O2, esse sangue é o mais oxigenado de todo o retorno venoso, tendo a veia cava superior uma saturação de aproximadamente 40% 2. O sangue da cava inferior representa aproximadamente 70% do volume total do retorno venoso. Este chega ao átrio direito (AD) e é parcialmente (33%) dirigido para o átrio esquerdo (AE) através do foramen oval. A energia cinética do fluxo sangüíneo da veia cava inferior é a principal responsável pela manutenção da perviabilidade do foramen oval no feto, já que as diferenças nas pressões médias da veia cava, AD e AE são mínimas 3. O restante do fluxo de retorno da cava inferior mistura-se ao retorno da veia cava superior e seio coronário e passa para o VD. O sangue que chega ao AE e daí ao ventrículo esquerdo e a aorta ascendente, artérias coronárias e cérebro é, conseqüentemente, o mais saturado com aproximadamente 65% em relação a uma saturação de 55% no VD, que será dirigido através do canal arterial para a parte inferior do corpo do feto 4. O istmo da aorta recebe apenas 10% do débito cardíaco total e, pelo seu estreitamento fisiológico, "separa" o fluxo entre a aorta ascendente e a descendente 2. O baixo fluxo pulmonar fetal é mantido às custas da elevada resistência vascular pulmonar. Vários fatores estimulam esta vasoconstricção como acidose, catecolaminas alfa-adrenérgicas e estimulação nervosa simpática, porém não há dúvidas que a hipóxia é o principal fator determinante da vasoconstricção pulmonar fetal. Devido à alta resistência ao fluxo sangüíneo pulmonar, apenas uma pequena quantia (aproximadamente 7% do débito cardíaco combinado) de sangue circula pelos pulmões, o restante é dirigido, através do canal arterial para a aorta descendente. Embora o VD (60%) apresente um débito cardíaco superior ao do VE (40%) na vida intra-uterina, há evidências anatômicas e ecocardiográficas de que o desenvolvimento destas cavidades são semelhantes durante toda a gestação 5.
figura 1, adaptada de estudos realizados em fetos de carneiro por Rudolph e col 6, e Heyman e col 7, mostra esquematicamente a distribuição do volume sangüíneo, os níveis pressóricos e de saturação de oxigênio fetais. Na tabela I, adaptada também de estudos em fetos de carneiros 8 estão sumarizados freqüência cardíaca, pressão arterial, gasometria, pH, conteúdo de oxigênio, e, ainda, a distribuição sangüínea para os órgãos, débito cardíaco, liberação de O2 e resistência vascular fetais.


Diagnóstico das alterações funcionais do coração do feto
Com o conhecimento da fisiologia da circulação fetal, podemos facilmente entender os diferentes comportamentos das alterações do sistema cardiovascular fetal que nos levam a subdividir as cardiopatias fetais em ativas e passivas. Incluem-se sob o grupo de cardiopatias passivas, todas as malformações do sistema cardiovascular fetal que não provocam repercussão hemodinâmica intra-útero, notadamente as cardiopatias estruturais, sem regurgitação valvar. Muitas cardiopatias graves, canal-dependentes, também se incluem neste grupo, por só manifestarem alterações clínicas no período neonatal, após o fechamento do canal arterial. O outro grupo, ao qual chamamos de cardiopatias ativas, inclui todas as alterações do sistema cardiovascular fetal que provocam repercussão hemodinâmica ainda na vida intra-uterina. Neste, incluímos, as arritmias cardíacas, as cardiopatias estruturais com regurgitação valvar importante que podem evoluir para insuficiência cardíaca fetal, miocardiopatias e miocardites, e as alterações funcionais do coração fetal como resposta a condições adversas. Neste último grupo, destacamos a hidropisia não imune, o crescimento intra-uterino retardado, o diabetes mellitus e a hipertensão arterial materna, a anemia fetal e o uso de drogas.
O principal fator de descompensação cardiovascular fetal, comum a todas as situações acima é a hipóxia. Nesta situação, independente de seu mecanismo etiológico há uma redistribuição do fluxo sangüíneo fetal, que pode ser resumida como: 1) um aumento do fluxo cerebral e adrenal; 2) ]]>Sob o ponto de vista funcional, as pr ]]> 9 e a perda da função contrátil. Cardiomegalia com ou sem derrame pericárdico é um importante sinal de disfunção cardíaca fetal 10. A pre ]]>
Do ponto de vista hemodinâmico, alterações da pré-carga ou intrínsecas do miocárdio ventricular como àquelas observadas em fetos de mães diabéticas podem alterar a evolução normal do enchimento ventricular, prolongando o período de dominância da contração atrial até após o nascimento 11. Estes achados podem ser mais evidentes no lado direito do coração por ser o volume de fluxo transvalvar tricuspídeo maior que o mitral durante toda a gestação 12.
A utilização criteriosa da ecocardiografia na avaliação do fluxo intra e extracardíaco fetal pode detectar precocemente estas alterações. Esta abordagem precoce vem assumindo um importante papel no manuseio de gestações patológicas como as acima citadas e reitera a importância do trabalho multidisciplinar entre obstetras, fetologistas e cardiologistas fetais no rastreamento e manuseio das alterações do sistema cardiovascular fetal.

Referências
1. Elderstone DI, Rudolph AM, Heyman MA - Effects of hypoxemia and decreasing umbilical flow on liver and ductus venosus blood flow in fetal lambs. Am J Physiology 1980; 238: H656.         [ Links ]
2. Rudolph AM, Heymann MA - The circulation of the fetus in utero. Methods for studying blood flow, cardiac output and organ blood flow. Circ Res 1967; 26: 289.         [ Links ]
3. Anderson D, Faber J, Morton M, Parks C, Pinson C, Thornburg K - Flow through the foramen ovale in the fetal newborn lamb. J Physiology 1985; 365:19.         [ Links ]
4. Elderstone DI, Rudolph AM. Preferential streaming of the ductus venosus blood to the brain and heart in fetal lambs. Am J Obstet Gynecol 1979; 237: H724.         [ Links ]
5. St John Sutton MG, Raichlen JS, Reichek N, Huff DS - Quantitative assessment of right and left ventricular growth in the human fetal heart: a pathoanatomic study. Circulation 1984; 70: 935.         [ Links ]
6. Rudolph AM, Heymann MA - Control of Fetal Circulation. In: Comline RS, Dawes GS, Nathaniels PW, eds - Fetal and Neonatal Physiology. London: Cambridge University Press, 1983.         [ Links ]
7. Heyman MA - Management of the newborn circulation. In: Jones CT, Nathanielsz PW - The Physiological Development of the Fetus and Newborn, part 7. ed. London: Academic Press Inc, 1985; pp 721-731.         [ Links ]
8. Jensen A, Roman C, Rudolph AM - Effects of reducing uterine blood flow distribution and fetal blood oxygen delivery. J Development Physiology 1991; 15: 309.         [ Links ]
9. DeVore GR, Donnerstein RL, Kleiman CS, Platt LD, Hobbins JC. Fetal Echocardiography. II - Diagnosis and significance of a pericardial effusion in the fetus using real time directed M mode ultrasound. Am J Obstet Gynecol 1982; 144: 693.         [ Links ]
10. Johnson P, Sharland G, Allan LD, Tynan MJ, Maxwell DJ - Umbilical venous pressure in nonimmune hydrops fetalis: correlation with cardiac size. Am J Obstet Gynecol 1992; 167: 1309.         [ Links ]
11. Rizzo G, Arduini D, Romanini C - Cardiac function in fetus of type I diabetic mothers. J Pediatr 1991; 118:103.         [ Links ]
12. Reed KL, Sahn DJ, Scagnelli S, Anderson CF, Shenker L - Doppler echocardiographic studies of diastolic function in the human fetal heart: changes during gestation. J Am Coll Cardiol 1986; 8: 381.         [ Links ]


 Unidade de Cardiologia e Medicina Fetal do Hospital Português - Recife

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