REFLUXO GASTROESOFÁGICO NA CRIANÇA
João Lage
Conceito: conceitua-se
refluxo gastroesofágico (RGE) como o fluxo retrógado involuntário do conteúdo
gástrico para o esôfago.
É a
condição que mais comumente acomete o esôfago na faixa pediátrica e uma das
três queixas mais frequentes em gastroenterologia pediátrica, juntamente com a
dor abdominal e a constipação.
Classificação: o
RGE pode ser fisiológico ou patológico. Quando patológico ainda pode ser
primário ou secundário.
a) RGE fisiológico: refere-se
a presença de refluxo em crianças saudáveis que vomitam ou regurgitam, mas não
apresentam as condições que predispõe ao refluxo e não apresentam suas
complicações. Em resumo, é o refluxo que não se associa a doenças ou
complicações. Tais episódios de RGE manifestam-se no período pós-prandial imediato, são de curta duração e sem significado
clínico. A frequência dos sintomas
diminui a partir do segundo semestre de vida, coincidindo com a adoção de
postura mais ereta e a transição para alimentos sólidos e pastosos.
O
recém-nascido apresenta imaturidade anatômica e funcional do esfíncter
esofagiano inferior (EEI) que ao contrário do adulto apresenta pequeno diâmetro
e localização predominantemente intratorácica. Só após 3 anos o EEI atingirá
dimensões próprias do adulto.
b) RGE patológico: associa-se
as complicações advindas de sua presença. Primário: quando decorrente de
disfunção na região da junção gastroesofágica secundária: quando
associado a doenças subjacentes, localizadas no trato digestivo ou fora dele.
Mecanismo antirrefluxo: sob
condições fisiológicas normais, o movimento do conteúdo gástrico para o esôfago
é prevenido pela barreira
antirrefluxo localizada na junção gastroesofágica. Os seus componentes principais
são:
·
EEI
·
Ligamento frenoesofágico
·
Diafragma crural
·
Ângulo de His
·
Roseta da mucosa gástrica
Durante
a inspiração: durante a inspiração, forma-se um gradiente
de pressão entre o estômago e o esôfago, que pode ser superior à pressão do EEI
e predispões ao RGE. Entretanto, nessa fase da respiração, o hiato
diafragmático (constituído pelas fibras diafragmáticas) contrai-se, com
consequente aumento da pressão intraluminal da junção gastroesofágica,
dificultando ou impedindo o RGE.
Ainda
na inspiração o ligamento frenoesofágico faz com que o EEI e o hiato
diafragmático deslizem juntos para baixo, impedindo que o esfíncter assuma uma
posição totalmente intratorácica, o que facilitaria o RGE.
Durante
a expiração: a responsabilidade recai principalmente sobre
o EEI.
Ângulo
de Hiss: apresenta um ângulo menos agudo no neonato
que no adulto o que favorece o RGE.
Roseta
gástrica: é constituída de pregas da mucosa que
promovem o fechamento da cárdia ao se contraírem promovendo dessa forma uma
barreira antirrefluxo.
Fisiopatologia: a
fisiopatologia do RGE é complexa e envolve fatores genéticos, ambientais
(hábitos alimentares e tabagismo), anatômicos, hormonais e neurogênicos. De
modo geral pode-se dizer que o RGE ocorre quando existe falha dos mecanismos
que atuam como barreira antirrefluxo, enquanto que a doença do refluxo
gastroesofágico (DRGE) se desenvolve quando, na presença do RGE, ocorre um
desequilíbrio entre os mecanismos de agressão e de defesa que serão
apresentados a seguir.
Mecanismos
de agressão
|
Mecanismos
de defesa
|
||||
Frequência
do RGE
|
Composição
do
RGE
|
Clearance esofágico
|
Resistência
tecidual da mucosa esofágica
|
||
·
Relaxamento
transitório do EEI
·
Hipotonia
do EEI
·
Hérnia
hiatal
·
Aumento
da pressão intrabdominal
·
Esvaziamento
gástrico lento
|
·
HCL
·
Pepsina
·
Ácidos
biliares
·
Tripsina
|
·
Secreção
salivar
·
Peristaltismo
esofágico
·
Gravidade
|
Epitelial
|
Pós-epitelial
|
|
Anatômicos
|
Funcionais
|
·
Fluxo sanguíneo (remove os ácidos e o CO2)
·
Bicarbonato
|
|||
·
Membrana celular
·
Junções firmes
·
Muco intercelular
|
·
Capacidade intracelular de tamponar H+
·
Transporte epitelial de íons que expele H+
para o fluido intersticial
·
Replicação celular
|
Outro
fator agressor importante é o aumento da pressão intragástrica comumente
observado em alimentações abundantes. A resposta inicial neste caso seria uma
contração do EEI, porém com o aumento sucessivo da pressão intragástrica ocorrerá,
no esôfago distal, um aumento do fluxo sanguíneo com consequente aumento na
produção de prostaglandinas que irão, por sua vez, causar a contração do piloro
aumentando ainda mais a pressão intragástrica e consequentemente aumentando a
probabilidade de RGE.
Relaxamento
transitório do EEI: é considerado hoje a principal causa de
RGE na faixa pediátrica. Este relaxamento esfincteriano não se relaciona à
deglutição e/ou aos movimentos peristáltico do esôfago. Parecem ocorrer pela
liberação de neurotransmissores sendo principalmente o óxido nítrico e o
peptídeo intestinal vasoativo. As alterações relacionadas ao SNC e à uma
resposta do sistema nervoso entérico também podem estar envolvidas nos
relaxamentos inapropriados do EEI.
Esofagite
em uma retroalimentação positiva:
em
uma DRGE pode ocorrer a esofagite levando à disfunção do EEI. Dessa maneira o
EEI se tornará mais fraco gerando um ciclo vicioso onde a inflamação causará
cada vez mais inflamação.
Composição
do refluxo: a agressão tecidual pode ser ocasionada por
HCl, pepsina, sais biliares e tripsina. Os dois últimos são mais comuns em
refluxo duodenogástrico. No entanto, tanto refluxos ácidos (pH<4) como
básicos (pH>7,0) podem ocasionar esofagite. Os sais biliares aumentam a
permeabilidade da mucosa esofágica aos ácidos. Por esta razão, o material
fluido misto, duodenal e gástrico, pode ser mais nocivo.
Peculiaridades da fisiopatologia do RGE
em crianças menores
·
Dieta rica e volumosa de recém-nascidos e
lactentes.
·
Crianças menores apresentam esôfago abdominal
curto
·
Apresentam menor razão dos volumes
esofágico/gástrico
·
Relaxamento do esfíncter superior do esôfago
durantes os episódios de RGE.
·
Menor Clearance esofágico em prematuros.
·
Esvaziamento gástrico lento e menor
complacência gástrica o que causa distensão gástrica diante de pequenos
volumes.
Manifestações clínicas
a) Vômitos
e regurgitações: são os sintomas mais frequentes ocorrendo em
80 a 95% dos lactentes menores de 12 meses com RGE patológica. Dependendo do
volume de perdas, pode ocorrer: 1) déficit de crescimento e 2) anemia
ferropriva. Em geral ocorrem no período pós-prandial, mas podem ocorrer horas
após a alimentação. Diagnóstico
diferencial: deve ser realizado com a intolerância da proteína do leite da
vaca e com as anomalias anatômicas congênitas, como a estenose hipertrófica do
piloro e a má rotação intestinal.
b) Esofagite
e suas complicações: manifesta-se nas crianças mais jovens
por: 1) choro excessivo, 2) irritabilidade, 3) distúrbio do sono, 4)
dificuldade alimentar, 5) hemorragia digestiva alta (sob a forma de hematêmese,
melena e sangue oculto nas fezes), 6) disfagia e odinofagia. Complicações:
·
Estenose do esôfago: no
estágio inicial a estenose é decorrente de edema de mucosa e do espasmo
muscular, alterações reversíveis apenas com a terapêutica adequada. Se a
agressão persiste, as erosões tornam-se confluentes, mais profundas e surgem a
ulcerações. Com a progressão da doença, a injuria tecidual atinge a submucosa,
a muscular e o sistema nervoso intrínseco. Ocorrerá deposição de colágeno tipo
III e posteriormente tipo I que será responsável pela instalação de fibrose
cicatricial irreversível, com estreitamento da luz do órgão. A principal
manifestação clínica é a disfagia primeiramente para alimentos sólidos e
posteriormente para líquidos.
·
Esôfago de Barret: é
uma condição pré-maligna na qual o epitélio do esôfago, tipicamente escamoso
estratificado, é substituído por epitélio colunar especializado com células
caliciformes. Geralmente não apresenta manifestações clínicas específicas só
sendo descoberto mediante avaliação endoscópica.
·
Síndrome de Sandifer: é
representada pela tríade: esofagite grave, movimentos rotatórios da cabeça e
pescoço e anemia ferropriva.
c) Manifestações
respiratórias: pode estar associada a rouquidão, soluços,
estridor intermitente, laringite, tosse, broncoespasmo, pneumonia, crises de
cianose, apneia obstrutiva com hipoxemia e bradicardia.
d) Manifestações
otorrinolaringológicas: sinusite e a otite média.
Considerações
sobre as manifestações clínicas nos Lactentes:
ü Nos
lactentes o RGE é comum e na maioria das vezes fisiológico.
ü Em
geral torna-se sintomático por volta do segundo ao quarto mês de vida com pico
de incidência entre o quarto e o quinto mês de vida
ü Apresenta
resolução espontânea entre 12 a 24 meses de idade em 80% dos casos.
ü Nesta
fase a regurgitação e o vômito são sintomas clássicos do refluxo.
ü Nas
crianças menores, a irritabilidade, a recusa alimentar e a cólica atípica podem
ser correspondentes não verbais da queimação retroesternal, sugerindo esofagite.
Diagnóstico: o
diagnóstico de RGE deve começar pela história clínica, com especial atenção a
história alimentar, padrão dos vômitos e regurgitações, manifestações
associadas, HP e HF. A avaliação do ritmo do crescimento deve constituir parte
fundamental do exame físico. Crianças maiores com RGE diagnosticado precisam de
cuidados especiais enquanto que lactentes precisam apenas de cuidados gerais.
a) Radiografia
constratada do esôfago do estômago e do duodeno (RxEED)
·
Indicação:
avaliar
a presença de anormalidades anatômicas, congênitas ou adquiridas, importantes
tanto para o diagnostico diferencial, quanto para a decisão da conduta
terapêutica. Detecta também: hérnia
hiatal, o próprio refluxo, estenose esofágica alem de fornecer informações
sobre a motilidade esofagogástrica. É o teste mais utilizado.
·
Vantagens:
baixo
custo e de fácil execução.
·
Desvantagens: curto
período de tempo para avaliar o RGE e somente após ingestão de contraste
(período pós-prandial imediato).
b) Cintilografia
gastroesofágica: a cintilografia com tecnécio 99 apresenta
acurácia diagnóstica próxima ao da radiografia contrastada. Porém, é melhor
para detectar aspiração pulmonar e para se estudar esvaziamento gástrico. Uma
frequência de mais de 3 refluxos/hora é, provavelmente, anormal.
c) pHmetria:
·
Indicações:
avaliação
dos sintomas atípicos, presença de sintomas extradigestivos da DRGE, pesquisa
de RGE oculto, avaliação da resposta ao tratamento clínico em pacientes portadores
de esôfago de Barret ou de DGRE de difícil controle e avaliação pré e
pós-operatória do paciente com DRGE.
·
Vantagens:
pode diferencia RGE fisiológico do patológico e quantificá-lo. Apresenta boa
sensibilidade e especificidade para pesquisa de RGE.
·
Desvantagens:
em
pacientes com dieta exclusiva o predominantemente láctea pode ocorrer a
neutralização pelo leite, não sendo recomendada a realização do exame no
período pós-prandial.
Quando os sintomas são
típicos ou o paciente já apresenta algum exame que comprove a presença de RGE a
pHmetria não deve ser realizada.
Este exame é mais usado para
a avaliação da correlação entre presença de refluxo e eventos como apneia,
sibilância, dor retroesternal, tosse, irritabilidade, distúrbios de sono e
choro excessivo.
d) Endoscopia
digestiva alta: é procedimento invasivo, comumente realizado
sob anestesia geral nos menores de 2 anos de idade. Ela não diagnostica o RGE,
mas sim a esofagite a ele associada. Permite ainda identificação de estenose de
esôfago, hérnia de hiato, esôfago de Barret, ulcera péptica gastroduodenal e a
coleta de biopsias para estudo histológico.
·
Indicação:
quando
houver suspeita de esofagite e suas complicações.
Tratamento: o
tratamento do refluxo é individualizado e depende da faixa etária e das
manifestações clínicas predominantes. Baseia-se na instituição de medidas
comportamentais e medicamentosas. O tratamento comportamental é válido para
todos e o medicamentoso se restringe àqueles com RGE comprovadamente patológico
e/ou aqueles fisiológicos que não respondem aos cuidados gerais.
a) Medidas
comportamentais
·
Evitar refeições volumosas e altamente
calóricas. Evitar alimentos gordurosos, refrigerantes, chocolates, cafeinados.
·
Não comer
3 a 4 horas antes de dormir.
·
Diminuir o volume de alimentos e aumentar a
frequência das refeições pode ser bom para crianças que ingerem grande
quantidade de alimentos em poucas refeições ao dia.
·
Espessamento da dieta é indicado apenas em casos
em que ocorre vômitos e regurgitações intensos e que não seja comprovada a
presença de esofagite.
·
Evitar uso de roupas apertadas
·
Evitar uso de drogas que diminuem a pressão
do EEI como anticolinérgicos, adrenérgicos, bloqueadores de canal de Cálcio e prostaglandinas.
·
Evitar troca de fraldas no período
pós-prandial
b) Medidas
posturais
·
Posição prona ou decúbito lateral. A posição
supina pode ser feita em casos graves, mas sempre sobre cuidados de cuidadores
uma vez que está relacionada à morte súbita.
·
Cabeceira elevada.
c) Tratamento
medicamentoso
c.1)
Drogas procinéticas
·
Cisaprida
Atuação:
agonista
de receptores pós-ganglionares da serotonina resulta da liberação de
acetilcolina no plexo mioentérico. A cisaprida melhora a motilidade de todo o
trato gastrintestinal, facilita a coordenação antro-duodenal, acelera o
esvaziamento gástrico e aumenta a pressão do EEI.
Meia
vida: 7 a 19 horas
Efeitos
colaterais: cólica, diarreia e cefaleia. Podem ocorrer
repercussões cardiovasculares.
Posologia:
0,8
mg/kg/dia (máximo de 40mg/dia) divididas em 3 ou 4 administrações diárias.
Contra-indicações:
uso
de antibióticos macrólidos (claritromicina, eritromicina, azitromicina), drogas
benzoimidazólicas (fluconazol, cetoconazol, itraconazol), inibidoras das
proteases (anti-retrovirais), fenotiazidas (prometazina), anti-arrítmicos,
antidepressivos, antipsicóticos e outros agentes, inclusive suco de taranja.
Nestes casos usar a domperidona.
·
Domperidona
Atuação:
antagonista
dopaminérgico periférico sem efeitos colinérgicos. Não causa reações
extrapiramidais. Aumento o peristaltismo esofagiano e acelera o esvaziamento
gástrico.
Meia
vida: 7 horas
Efeitos
colaterais: boca seca, erupção cutânea, diarréia, prurido
transitório.
Posologia:
A
dose recomendada é de 0,2 a 0,6 mg/kg/ dose, três a quatro vezes ao dia, antes
das refeições e ao deitar. Sua maior eficácia pode ser atingida após a quarta
semana de uso.
c.2)
Drogas supressoras da acidez:
·
Antiácidos
Atuação: são
utilizados largamente para o alivio temporário dos sintomas ou como profilaxia
da esofagite. Alem de reduzirem a acidez aumentam a motilidade pela liberação
de gastrina.
Posologia:
os
mais potentes disponíveis no mercado devem ser utilizados na dose de
0,5ml/kg/dose. No lactente alimentados a curtos intervalos devem ser
administrados 1 hora após cada refeição e nas crianças maiores 1 a 3 horas após
as três principais refeições e ao deitar.
·
Antagonistas dos receptores H2 da
histamina (cimetidina, ranitidina, famotidina, nizatidina)
Atuação:
competem
com a histamina por receptores H2, inibindo a secreção gástrica de ácido
induzida pela histamina ou outros agonistas H2 (agonistas muscarínicos e
gastrina).
Posologia:
As
doses recomendadas são cimetidina de 5 a 10 mg/kg, quatro vezes ao dia, antes das
refeições e antes de deitar, e ranitidina de 5mg/kg, duas vezes ao dia.
·
Bloqueadores dos canais de H+
Atuação:
O
omeprazol é um benzimidazólico que inibe a enzima responsável pelo transporte
de íons de hidrogênio para a luz do estômago. Tem ação prolongada, mesmo quando
níveis sanguíneos já não são detectáveis. Uma única dose pode suprimir mais de
90% da secreção ácida em vinte e quatro horas.
Posologia:
Têm
sido recomendadas doses de 0,7 a 3,3 mg/kg/ dia, com dose média de 1,9
mg/kg/dia. Deve-se tomar antes da primeira refeição da manhã. No caso de doses
pediátricas os grânulos são separados e administrados juntamente a sucos
cítricos.
d) Tratamento
cirúrgico: deve ser instituído quando não se obtém
sucesso no tratamento clínico e há possibilidade de risco á vida.
A técnica de Nissen é a mais usada em todo o
mundo e, mais recentemente, a via videolaparoscópica vem ganhando adesões,
especialmente em virtude do menor risco de complicações e menor tempo de
recuperação.
qual foi a literatura usada ?
ResponderExcluir