quinta-feira, 14 de março de 2013

RGE NA CRIANÇA


REFLUXO GASTROESOFÁGICO NA CRIANÇA

João Lage


Conceito: conceitua-se refluxo gastroesofágico (RGE) como o fluxo retrógado involuntário do conteúdo gástrico para o esôfago.
É a condição que mais comumente acomete o esôfago na faixa pediátrica e uma das três queixas mais frequentes em gastroenterologia pediátrica, juntamente com a dor abdominal e a constipação.
Classificação: o RGE pode ser fisiológico ou patológico. Quando patológico ainda pode ser primário ou secundário.

a)   RGE fisiológico: refere-se a presença de refluxo em crianças saudáveis que vomitam ou regurgitam, mas não apresentam as condições que predispõe ao refluxo e não apresentam suas complicações. Em resumo, é o refluxo que não se associa a doenças ou complicações. Tais episódios de RGE manifestam-se no período pós-prandial imediato, são de curta duração e sem significado clínico.  A frequência dos sintomas diminui a partir do segundo semestre de vida, coincidindo com a adoção de postura mais ereta e a transição para alimentos sólidos e pastosos.
O recém-nascido apresenta imaturidade anatômica e funcional do esfíncter esofagiano inferior (EEI) que ao contrário do adulto apresenta pequeno diâmetro e localização predominantemente intratorácica. Só após 3 anos o EEI atingirá dimensões próprias do adulto.
b)   RGE patológico: associa-se as complicações advindas de sua presença. Primário: quando decorrente de disfunção na região da junção gastroesofágica secundária: quando associado a doenças subjacentes, localizadas no trato digestivo ou fora dele.




Mecanismo antirrefluxo: sob condições fisiológicas normais, o movimento do conteúdo gástrico para o esôfago é prevenido pela barreira antirrefluxo localizada na junção gastroesofágica. Os seus componentes principais são:
·         EEI
·         Ligamento frenoesofágico
·         Diafragma crural
·         Ângulo de His
·         Roseta da mucosa gástrica
Durante a inspiração: durante a inspiração, forma-se um gradiente de pressão entre o estômago e o esôfago, que pode ser superior à pressão do EEI e predispões ao RGE. Entretanto, nessa fase da respiração, o hiato diafragmático (constituído pelas fibras diafragmáticas) contrai-se, com consequente aumento da pressão intraluminal da junção gastroesofágica, dificultando ou impedindo o RGE.
Ainda na inspiração o ligamento frenoesofágico faz com que o EEI e o hiato diafragmático deslizem juntos para baixo, impedindo que o esfíncter assuma uma posição totalmente intratorácica, o que facilitaria o RGE.
Durante a expiração: a responsabilidade recai principalmente sobre o EEI.


Ângulo de Hiss: apresenta um ângulo menos agudo no neonato que no adulto o que favorece o RGE.
Roseta gástrica: é constituída de pregas da mucosa que promovem o fechamento da cárdia ao se contraírem promovendo dessa forma uma barreira antirrefluxo.
Fisiopatologia: a fisiopatologia do RGE é complexa e envolve fatores genéticos, ambientais (hábitos alimentares e tabagismo), anatômicos, hormonais e neurogênicos. De modo geral pode-se dizer que o RGE ocorre quando existe falha dos mecanismos que atuam como barreira antirrefluxo, enquanto que a doença do refluxo gastroesofágico (DRGE) se desenvolve quando, na presença do RGE, ocorre um desequilíbrio entre os mecanismos de agressão e de defesa que serão apresentados a seguir.
Mecanismos de agressão
Mecanismos de defesa
Frequência do RGE
Composição
do RGE
Clearance esofágico
Resistência tecidual da mucosa esofágica
·         Relaxamento transitório do EEI
·         Hipotonia do EEI
·         Hérnia hiatal
·         Aumento da pressão intrabdominal
·         Esvaziamento gástrico lento
·         HCL
·         Pepsina
·         Ácidos biliares
·         Tripsina
·         Secreção salivar
·         Peristaltismo esofágico
·         Gravidade
Epitelial
Pós-epitelial
Anatômicos
Funcionais
·         Fluxo sanguíneo (remove os ácidos e o CO2)
·         Bicarbonato
·         Membrana celular
·         Junções firmes
·         Muco intercelular
·         Capacidade intracelular de tamponar H+
·         Transporte epitelial de íons que expele H+ para o fluido intersticial
·         Replicação celular


Outro fator agressor importante é o aumento da pressão intragástrica comumente observado em alimentações abundantes. A resposta inicial neste caso seria uma contração do EEI, porém com o aumento sucessivo da pressão intragástrica ocorrerá, no esôfago distal, um aumento do fluxo sanguíneo com consequente aumento na produção de prostaglandinas que irão, por sua vez, causar a contração do piloro aumentando ainda mais a pressão intragástrica e consequentemente aumentando a probabilidade de RGE.
Relaxamento transitório do EEI: é considerado hoje a principal causa de RGE na faixa pediátrica. Este relaxamento esfincteriano não se relaciona à deglutição e/ou aos movimentos peristáltico do esôfago. Parecem ocorrer pela liberação de neurotransmissores sendo principalmente o óxido nítrico e o peptídeo intestinal vasoativo. As alterações relacionadas ao SNC e à uma resposta do sistema nervoso entérico também podem estar envolvidas nos relaxamentos inapropriados do EEI.
Esofagite em uma retroalimentação positiva: em uma DRGE pode ocorrer a esofagite levando à disfunção do EEI. Dessa maneira o EEI se tornará mais fraco gerando um ciclo vicioso onde a inflamação causará cada vez mais inflamação.
Composição do refluxo: a agressão tecidual pode ser ocasionada por HCl, pepsina, sais biliares e tripsina. Os dois últimos são mais comuns em refluxo duodenogástrico. No entanto, tanto refluxos ácidos (pH<4) como básicos (pH>7,0) podem ocasionar esofagite. Os sais biliares aumentam a permeabilidade da mucosa esofágica aos ácidos. Por esta razão, o material fluido misto, duodenal e gástrico, pode ser mais nocivo.
Peculiaridades da fisiopatologia do RGE em crianças menores
·         Dieta rica e volumosa de recém-nascidos e lactentes.
·         Crianças menores apresentam esôfago abdominal curto
·         Apresentam menor razão dos volumes esofágico/gástrico
·         Relaxamento do esfíncter superior do esôfago durantes os episódios de RGE.
·         Menor Clearance esofágico em prematuros.
·         Esvaziamento gástrico lento e menor complacência gástrica o que causa distensão gástrica diante de pequenos volumes.
Manifestações clínicas
a)   Vômitos e regurgitações: são os sintomas mais frequentes ocorrendo em 80 a 95% dos lactentes menores de 12 meses com RGE patológica. Dependendo do volume de perdas, pode ocorrer: 1) déficit de crescimento e 2) anemia ferropriva. Em geral ocorrem no período pós-prandial, mas podem ocorrer horas após a alimentação. Diagnóstico diferencial: deve ser realizado com a intolerância da proteína do leite da vaca e com as anomalias anatômicas congênitas, como a estenose hipertrófica do piloro e a má rotação intestinal.
b)   Esofagite e suas complicações: manifesta-se nas crianças mais jovens por: 1) choro excessivo, 2) irritabilidade, 3) distúrbio do sono, 4) dificuldade alimentar, 5) hemorragia digestiva alta (sob a forma de hematêmese, melena e sangue oculto nas fezes), 6) disfagia e odinofagia. Complicações:
·         Estenose do esôfago: no estágio inicial a estenose é decorrente de edema de mucosa e do espasmo muscular, alterações reversíveis apenas com a terapêutica adequada. Se a agressão persiste, as erosões tornam-se confluentes, mais profundas e surgem a ulcerações. Com a progressão da doença, a injuria tecidual atinge a submucosa, a muscular e o sistema nervoso intrínseco. Ocorrerá deposição de colágeno tipo III e posteriormente tipo I que será responsável pela instalação de fibrose cicatricial irreversível, com estreitamento da luz do órgão. A principal manifestação clínica é a disfagia primeiramente para alimentos sólidos e posteriormente para líquidos.
·         Esôfago de Barret: é uma condição pré-maligna na qual o epitélio do esôfago, tipicamente escamoso estratificado, é substituído por epitélio colunar especializado com células caliciformes. Geralmente não apresenta manifestações clínicas específicas só sendo descoberto mediante avaliação endoscópica.
·         Síndrome de Sandifer: é representada pela tríade: esofagite grave, movimentos rotatórios da cabeça e pescoço e anemia ferropriva.
c)   Manifestações respiratórias: pode estar associada a rouquidão, soluços, estridor intermitente, laringite, tosse, broncoespasmo, pneumonia, crises de cianose, apneia obstrutiva com hipoxemia e bradicardia.
d)   Manifestações otorrinolaringológicas: sinusite e a otite média.
Considerações sobre as manifestações clínicas nos Lactentes:
ü  Nos lactentes o RGE é comum e na maioria das vezes fisiológico.
ü  Em geral torna-se sintomático por volta do segundo ao quarto mês de vida com pico de incidência entre o quarto e o quinto mês de vida
ü  Apresenta resolução espontânea entre 12 a 24 meses de idade em 80% dos casos.
ü  Nesta fase a regurgitação e o vômito são sintomas clássicos do refluxo.
ü  Nas crianças menores, a irritabilidade, a recusa alimentar e a cólica atípica podem ser correspondentes não verbais da queimação retroesternal, sugerindo esofagite.
Diagnóstico: o diagnóstico de RGE deve começar pela história clínica, com especial atenção a história alimentar, padrão dos vômitos e regurgitações, manifestações associadas, HP e HF. A avaliação do ritmo do crescimento deve constituir parte fundamental do exame físico. Crianças maiores com RGE diagnosticado precisam de cuidados especiais enquanto que lactentes precisam apenas de cuidados gerais.
a)   Radiografia constratada do esôfago do estômago e do duodeno (RxEED)
·         Indicação: avaliar a presença de anormalidades anatômicas, congênitas ou adquiridas, importantes tanto para o diagnostico diferencial, quanto para a decisão da conduta terapêutica.  Detecta também: hérnia hiatal, o próprio refluxo, estenose esofágica alem de fornecer informações sobre a motilidade esofagogástrica.  É o teste mais utilizado.
·         Vantagens: baixo custo e de fácil execução.
·         Desvantagens: curto período de tempo para avaliar o RGE e somente após ingestão de contraste (período pós-prandial imediato).
b)   Cintilografia gastroesofágica: a cintilografia com tecnécio 99 apresenta acurácia diagnóstica próxima ao da radiografia contrastada. Porém, é melhor para detectar aspiração pulmonar e para se estudar esvaziamento gástrico. Uma frequência de mais de 3 refluxos/hora é, provavelmente, anormal.
c)   pHmetria:
·         Indicações: avaliação dos sintomas atípicos, presença de sintomas extradigestivos da DRGE, pesquisa de RGE oculto, avaliação da resposta ao tratamento clínico em pacientes portadores de esôfago de Barret ou de DGRE de difícil controle e avaliação pré e pós-operatória do paciente com DRGE.
·         Vantagens: pode diferencia RGE fisiológico do patológico e quantificá-lo. Apresenta boa sensibilidade e especificidade para pesquisa de RGE.
·         Desvantagens: em pacientes com dieta exclusiva o predominantemente láctea pode ocorrer a neutralização pelo leite, não sendo recomendada a realização do exame no período pós-prandial.
Quando os sintomas são típicos ou o paciente já apresenta algum exame que comprove a presença de RGE a pHmetria não deve ser realizada.
Este exame é mais usado para a avaliação da correlação entre presença de refluxo e eventos como apneia, sibilância, dor retroesternal, tosse, irritabilidade, distúrbios de sono e choro excessivo.


d)   Endoscopia digestiva alta: é procedimento invasivo, comumente realizado sob anestesia geral nos menores de 2 anos de idade. Ela não diagnostica o RGE, mas sim a esofagite a ele associada. Permite ainda identificação de estenose de esôfago, hérnia de hiato, esôfago de Barret, ulcera péptica gastroduodenal e a coleta de biopsias para estudo histológico.
·         Indicação: quando houver suspeita de esofagite e suas complicações.



Tratamento: o tratamento do refluxo é individualizado e depende da faixa etária e das manifestações clínicas predominantes. Baseia-se na instituição de medidas comportamentais e medicamentosas. O tratamento comportamental é válido para todos e o medicamentoso se restringe àqueles com RGE comprovadamente patológico e/ou aqueles fisiológicos que não respondem aos cuidados gerais.

a)   Medidas comportamentais
·         Evitar refeições volumosas e altamente calóricas. Evitar alimentos gordurosos, refrigerantes, chocolates, cafeinados.
·          Não comer 3 a 4 horas antes de dormir.
·         Diminuir o volume de alimentos e aumentar a frequência das refeições pode ser bom para crianças que ingerem grande quantidade de alimentos em poucas refeições ao dia. 
·         Espessamento da dieta é indicado apenas em casos em que ocorre vômitos e regurgitações intensos e que não seja comprovada a presença de esofagite.
·         Evitar uso de roupas apertadas
·         Evitar uso de drogas que diminuem a pressão do EEI como anticolinérgicos, adrenérgicos, bloqueadores de canal de Cálcio e prostaglandinas.
·         Evitar troca de fraldas no período pós-prandial
b)   Medidas posturais
·         Posição prona ou decúbito lateral. A posição supina pode ser feita em casos graves, mas sempre sobre cuidados de cuidadores uma vez que está relacionada à morte súbita.
·         Cabeceira elevada.
c)   Tratamento medicamentoso
c.1) Drogas procinéticas
·         Cisaprida
Atuação: agonista de receptores pós-ganglionares da serotonina resulta da liberação de acetilcolina no plexo mioentérico. A cisaprida melhora a motilidade de todo o trato gastrintestinal, facilita a coordenação antro-duodenal, acelera o esvaziamento gástrico e aumenta a pressão do EEI.


Meia vida: 7 a 19 horas
Efeitos colaterais: cólica, diarreia e cefaleia. Podem ocorrer repercussões cardiovasculares.
Posologia: 0,8 mg/kg/dia (máximo de 40mg/dia) divididas em 3 ou 4 administrações diárias.
Contra-indicações: uso de antibióticos macrólidos (claritromicina, eritromicina, azitromicina), drogas benzoimidazólicas (fluconazol, cetoconazol, itraconazol), inibidoras das proteases (anti-retrovirais), fenotiazidas (prometazina), anti-arrítmicos, antidepressivos, antipsicóticos e outros agentes, inclusive suco de taranja. Nestes casos usar a domperidona.

·         Domperidona

Atuação: antagonista dopaminérgico periférico sem efeitos colinérgicos. Não causa reações extrapiramidais. Aumento o peristaltismo esofagiano e acelera o esvaziamento gástrico.

Meia vida: 7 horas

Efeitos colaterais: boca seca, erupção cutânea, diarréia, prurido transitório.

Posologia: A dose recomendada é de 0,2 a 0,6 mg/kg/ dose, três a quatro vezes ao dia, antes das refeições e ao deitar. Sua maior eficácia pode ser atingida após a quarta semana de uso.






c.2) Drogas supressoras da acidez:
·         Antiácidos
Atuação: são utilizados largamente para o alivio temporário dos sintomas ou como profilaxia da esofagite. Alem de reduzirem a acidez aumentam a motilidade pela liberação de gastrina.
Posologia: os mais potentes disponíveis no mercado devem ser utilizados na dose de 0,5ml/kg/dose. No lactente alimentados a curtos intervalos devem ser administrados 1 hora após cada refeição e nas crianças maiores 1 a 3 horas após as três principais refeições e ao deitar.

·         Antagonistas dos receptores H2 da histamina (cimetidina, ranitidina, famotidina, nizatidina)

Atuação: competem com a histamina por receptores H2, inibindo a secreção gástrica de ácido induzida pela histamina ou outros agonistas H2 (agonistas muscarínicos e gastrina).

Posologia: As doses recomendadas são cimetidina de 5 a 10 mg/kg, quatro vezes ao dia, antes das refeições e antes de deitar, e ranitidina de 5mg/kg, duas vezes ao dia.

·         Bloqueadores dos canais de H+

Atuação: O omeprazol é um benzimidazólico que inibe a enzima responsável pelo transporte de íons de hidrogênio para a luz do estômago. Tem ação prolongada, mesmo quando níveis sanguíneos já não são detectáveis. Uma única dose pode suprimir mais de 90% da secreção ácida em vinte e quatro horas.

Posologia: Têm sido recomendadas doses de 0,7 a 3,3 mg/kg/ dia, com dose média de 1,9 mg/kg/dia. Deve-se tomar antes da primeira refeição da manhã. No caso de doses pediátricas os grânulos são separados e administrados juntamente a sucos cítricos.

d)   Tratamento cirúrgico: deve ser instituído quando não se obtém sucesso no tratamento clínico e há possibilidade de risco á vida.
A técnica de Nissen é a mais usada em todo o mundo e, mais recentemente, a via videolaparoscópica vem ganhando adesões, especialmente em virtude do menor risco de complicações e menor tempo de recuperação.




Um comentário:

comenta ai vai!!