Doença hepática alcoólica (DHA)
Epidemiologia
Abuso e dependência alcoólica são os
mais sérios problemas médicos do mundo industrializado. Entre pacientes
hospitalizados, a prevalência dessas condições varia de 25 a 60%, gerando
enormes gastos aos cofres públicos.
Sabe-se atualmente que a evolução para
cirrose hepática ocorre em cerca de 20% dos indivíduos que ingerem acima de 60
a 80g de etanol por dia, durante mais de 8 a 10 anos. Essa evolução depende da
susceptibilidade individual, associada a fatores ambientais, exposição a drogas
indutoras enzimáticas, ou infecções concomitantes por vírus da hepatite B e C.
As mulheres são mais susceptíveis ao
desenvolvimento da DHA, e, nelas, a doença instala-se em idade baixa, após mais
curto período de exposição e ingestão de doses menores. Essa maior
predisposição relaciona-se a menor massa corpórea e maior proporção de tecido
adiposo que apresentam. Parece que também guarda relação a elevada resposta do
seu sistema de defesa aos neoantígenos formados a partir de hepatócitos
lesados, sendo, entre elas, além disso, mais elevadas a quantidade e
biodisponibilidade de enzimas hepáticas metabolizadas do etanol, cursando com
níveis séricos mais acentuados de acetaldeído e radicais de oxigênio livres.
Fisiopatologia
Do ponto de vista de patogenia,
atualmente se aceita que a DHA alcoólica esteja relacionada funcionalmente de
forma resumida a:
1) Hepatotoxicidade exercida pelo
acetaldeído, promovendo peroxidação de membranas biológicas, com formações de
complexo acetaldeído-proteína e de aductos de DNA;
2) Exarcebação de estresse oxidativo
formando radicais livres de oxigênio
3) Geração de endotoxinas, com maior
permeabilidade da mucosa com liberação e influxo de mediadores inflamatórios,
tais como TNF-a, IL-1, IL-6 e leucotrienos.
4) Ativação de células de Kupffer e
polimorfonucleares;
5) Polimorfismo e indução do Cyp2E1.
Metabolismo
do etanol: o álcool é
rapidamente absorvido pela mucosa gastrointestinal e apenas 10% do absorvido é
eliminado pelos pulmões e rins. O restante (90%) é metabolizado no fígado por 3
diferentes vias porem com o mesmo produto final: o acetaldeído.
·
Primeira
via: via
da álcool desidrogenase que ocorre no citosol, em que o hidrogênio é
transferido do etanol para o cofator NAD convertendo-se em NADH
·
Segunda
via: sistema
microssomal de oxidação no retículo endoplasmático, por meio de
citocromo P-450, que envolve principalmente o citocromo P-450 2E1 (CYP2E1).
Maior atividade de CYP2E1 pode ser induzida por maior consumo de álcool, o que
explica em parte a grande tolerância adquirida em etilistas crônicos.
·
Terceira
via: via
da catalase, que se dá nos peroxissomos, menos importante e responsável
por cerca de 10% do metabolismo do álcool. Em alcoolistas, há aumento do
metabolismo do álcool nos peroxissomos.
Nas
mitocôndrias, acetaldeído será convertido em ácido acético pela enzima aldeído
desidrogenase (ALDH).
Analisaremos agora como cada uma destas fases poderá
gerar um quadro patológico hepático:
·
O
acetaldeído produzido em grande quantidade nos alcoolistas leva a lesões das
organelas, sobretudo mitocôndrias e microtubulos, pela peroxidação lipídica e
pela formação de adutos com proteínas causando lesão do citoesqueleto e
membranas. Isso alem de causar a lesão propriamente dita dificulta o transporte
das lipoproteínas impedindo a exportação dos triglicérides favorecendo o
processo de esteatose.
·
O
acetaldeído é então convertido em acetato e este por meio da enzima acetil-Coa
sintase da origem a acetil-CoA. Este ultimo poderá ser metabolizado em ácido
graxo que junto a outros triglicerídeos irá favorecer ao acumulo de gordura
intrahepatócito favorecendo a esteatose hepática.
·
Devido
ao alto processamento hepático do álcool poderá ocorrer a diminuição de NAD.
Este é responsável por metabolizar o ácido graxo e converter lactato em
piruvato, portanto sua deficiência contribuirá para esteatose e acidose lática.
·
O
CYP2E1 sobre o etanol causa sua oxidação gerando radicais livres de O2,
que causam peroxidação de membranas celulares e agressão ás células. Quando
ocorre especificamente lesão das mitocôndrias por estes radicais livres
ocorrerá queda na oxidação de ácidos graxos favorecendo a esteatose.
Fatores
nutricionais: a
ingestão deficiente de proteínas, especialmente dos aminoácidos metionina e
colina, estaria implicada na patogênese da DHA. No entanto, a suplementação
desses elementos se mostrou ineficaz em prevenir a esteatose.
Fatores
genéticos: em uma população homogênea de
pacientes portugueses, sugeriu-se que o gene HLA-B5 conferia proteção, enquanto
o A28 e o Bw35 definiam sensibilidade acentuada ao desenvolvimento de lesões
histológicas típicas da agressão induzida pela etanol.
Fatores
imunológicos: ingestão
excessiva de álcool leva à redução dos mecanismos de defesa imunológica,
expressa por granulocitopoese, quimiotaxia, fagocitose e citotoxicidade. Este
quadro de supressão se agrava na presença de eventual desnutrição e da reduzida
secreção de fator de necrose tumoral pelas células de Kuppfer. Os doentes
evoluem com níveis altos de IgA de imunoglobulina ativador de LB responsáveis
pelo aparecimento de hipergamaglobulinemia.
Vírus
hepatite B e C: pacientes
alcoólatras tem maior susceptibilidade à infecção pelos vírus da hepatite.
Estes vírus contribuem então pela patogênese da doença.
Espectro da DHA
A agressão aos hepatócitos
manifesta-se sob formas clínicas, laboratoriais e histológicas diversas. Mais
comumente se manifestam por: 1) esteatose, 2) hepatite alcoólica, 3) hepatite
crônica ativa, 4) esclerose de veia centrolobular, 5) cirrose e 6) carcinoma hepatocelular.
1)
Esteatose hepática: esteatose ocorre na deficiência de
colina e metionina. Depende também da menor ingestão de ácido orótico e
carnitina, bem como da presença de lipoproteínas circulantes, sobretudo HDL.
Ø Manifestações
clínicas: hepatomegalia
de consistência variável, muitas vezes aumentada, com fígado apresentando
bordas rombas e superfície regular. Às vezes é doloroso à palpação. Quando
associam sinais inflamatórios é denominada esteato-hepatite.
Ø Laboratorial: Níveis séricos de aminotransferases
(AST e ALT) normais ou discretamente elevados. Porem em alguns casos podem
exibir valores até 10 vezes o valor normal. Sempre ocorre anterações acentuadas
de gamaglutamiltransferase (GAMA-GT). Não se modificam os valores de
bilirrubina total e frações da albumina, nem a atividade da protombina.
Ø Exame
de imagem: ultrassom
com aspecto típico, com fígado de textura hiperecóica, grosseira, e atenuação
de feixes acústicos posteriores.
Ø Anatomopatologia: revela-se pela presença de micro ou macrogotículas
de gordura no citoplasma. Constitui-se em entidade isolada ou pode ser
detectada associada à fibrose perivenular, à hepatite ou a cirrose.
Considerações
finais: a esteatose é
reversível em dias ou semanas após abstinência alcoólica.
2)
Hepatite alcoólica: percentual significativo de pacientes
alcoólatras evoluem para hepatite alcoólica (HA), síndrome inflamatória que
traduz necrose hepatocitária. Esta síndrome que pode se instalar tanto em
fígados normais ou cirróticos é potencialmente reversível e depende de
modificações nos índices de secreção de FNT-a, IL-1 e IL-6. Para que se
perpetue, participam deficiências nutricionais, que se instalam em indivíduos
geneticamente predispostos, cursando co distúrbio ao nível do sistema
imunológico.
Ø Manifestações
clínicas: pacientes
pouco sintomáticos ou assintomáticos, mesmo referindo história de ingestão
alcoólica excessiva, exibindo hepatomegalia. Forma mais grave se expressa pelo
aparecimento de icterícia, ascite, sinais de coagulopatia e, mesmo, encefalopatia,
cursando ainda com dor surda e suportável no hipocôndrio direito, fígado de
consistência aumentada, febre e leucocitose.
Ø Laboratorial:
o Bilirrubina total > 5mg/dl
o AS entre 100 e 400UI/l. 80 % dos
pacientes tem a relação AST:ALT em torno de 2, ou mais. Esse comportamento é
devido a: 1) menor concentração citosólica dessas enzimas nos alcoólatras
crônicos, 2) maior liberação de AST de fontes não hepáticas, como músculos e
eritrócitos e 3) menor concentração hepática de coenzimas, limitando a
capacidade de correção quantitativa dessas enzimas no soro.
o Fosfatase alcalina assume
comportamento variável tendendo a elevação, quando colestase.
o Gama-GT comporta-se como o melhor
marcador de DHA, ao lado do volume corpuscular médio das hemácias. Indica
sempre indução enzimática microssomal, determinada pelo etanol e seus
metabólitos.
o Níveis séricos reduzidos de albumina,
tempo de protrombina alargado e redução do fator V.
o A progressão para cirrose pode ser
associada a elevações de procolágeno tipo III.
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