DRGE e semiologia do esôfago
João Lage
Definições
Refluxo
gastroesofágico: deslocamento,
sem esforço, do conteúdo gástrico para o esôfago. Ocorre em todas as pessoas
varias vezes ao dia e, desde que não haja sintomas ou sinais de lesão na mucosa,
pode ser considerado um processo fisiológico.
Doença
do refluxo gastroesofágico: condição
na qual o refluxo do conteúdo gástrico causa sintomas que afetam o bem estar do
paciente e/ou complicações.
Epidemiologia da DRGE
No Brasil um estudo populacional
concluiu que 12% da população tem DRGE. A patologia afeta todas as faixas
etárias porem a população mais velha é a que mais procura os serviços de saúde.
Fisiopatologia
A DRGE é multifatorial, sendo que, os
sintomas e as lesões teciduais resultam do contato da mucosa com o conteúdo
gástrico refluxado, decorrentes de falha de uma ou mais das seguintes defesas
do esôfago: 1) barreira antirrefluxo, 2) mecanismos de depuração intraluminal e
3) resistência intrínseca do epitélio.
1.
Barreira
antirrefluxo: configura como a principal proteção contra o RGE sendo composta
por: a) EIE e b) esfíncter externo (formado pela parte crural do diafragma). O
EIE mantém-se fechado em repouso e relaxa com a deglutição. O relaxamento não
relacionado a deglutição é denominado transitório, sendo considerado o
principal mecanismo associado a DRGE. Muitas substâncias afetam o tônus do EIE,
dentre elas a CCK liberada na presença de gordura. Outros agentes são o NO e o
peptídeo vasointestinal ativo.
2.
Mecanismos
de depuração intraluminal: também denominada clearance esofágico decorre de uma combinação de mecanismos
mecânicos (peristaltismo e gravidade) e químicos (neutralização pela saliva ou
pela mucosa). A alteração do peristaltismo pode ser primária (distúrbios
motores do esôfago) ou secundária (doenças do tecido conjuntivo). A diminuição
do fluxo salivar pode ser devido ao uso adverso de medicamentos e/ou a síndrome
de Sjogren. A neutralização pela saliva demora de 3 a 5 min para agir e cada
7ml de saliva neutraliza 1ml de HCL.
Obs. Episódios de refluxo que ocorrem
durante o sono podem causar lesão mais facilmente, uma vez que ocorre
diminuição na produção de saliva e oposição à gravidade.
3.
Resistência
intrínseca do epitélio: é constituída pelos seguintes mecanismos de defesa:
Defesa pré-epitelial
|
Composta
por muco, bicarbonato e água no lúmen do esôfago formando uma barreira físico-química.
|
Defesa epitelial
|
Junções
intracelulares firmes, características do epitélio estratificado pavimentoso,
o que dificulta a retrodifusão de íons e substâncias tamponadoras intersticiais,
como proteínas, fosfato e bicarbonato)
|
Defesa pós-epitelial
|
Suprimento sanguíneo, responsável
tanto pelo aporte de oxigênio e nutrientes quanto pela remoção de
metabólitos)
|
Obs. Outro fator agravante é a adição
de enzimas proteolíticas duodenais ao suco gástrico pelo processo de refluxo
duodenogástrico.
Obs. Os mecanismo responsáveis por
sintomas extraesofágicos da DGRE, como tosse e broncoespasmo, nem sempre são
resumidos a aspiração com lesão da mucosa respiratória podendo ser também
atribuídos a estimulação do nervo vago no esôfago distal induzindo reflexo da
tosse.
Obs. No caso de granulomas de cordas
vocais e estenose subglótica, é necessário, provavelmente, o contato direto com
a mucosa das vias respiratórias.
Sintomatologia
a) Sintomas
típicos: os sintomas
clássicos da DRGE são: 1) pirose (sensação de queimação retroesternal, ascendente
em direção ao pescoço) e 2) regurgitação (retorno de conteúdo gástrico, ácido
ou amargo, até a faringe). Os pacientes podem relatar melhora dos sintomas após
uso de antiácidos. A piora dos sintomas pode ocorrer no período pós-prandial,
em decúbito dorsal e lateral direito.
b) Sintomas
atípicos: é
importante neste caso estabelecer diagnóstico diferencial com outras patologias
que podem gerar a mesma sintomatologia da DRGE: acalasia, dor coronariana, ulcera
péptica duodenal e câncer precoce de esôfago. As manifestações atípicas podem
ser esofágicas (no caso da dor torácica não-cardíaca), pulmonares, otorrinolaringológicas
e orais. No quadro a seguir cada manifestação será melhor descrita:
c) Sinais
de alerta: sugerem
formas mais agressivas ou complicações da doença: odinofagia, disfagia,
sangramento, anemia e emagrecimento.
Diagnóstico
O diagnóstico da DRGE típica é
realizado a partir de anamnese detalhada capaz de identificar as seguintes
características dos sintomas: intensidade, duração, frequência, fatores
desencadeantes e de melhora, evolução da enfermidade ao longo do tempo e o
impacto na qualidade de vida do paciente.
A frequência e duração dos sintomas
deve ser questionada. É consenso que pacientes que apresentam sintomas com
frequência mínima de 2 vezes por semana em um período de 4 a 8 semanas devem
ser considerados suspeitos para DRGE.
É importante na abordagem inicial
saber a idade do paciente, manifestações de alarme, história familiar de
câncer, náuseas e vômitos, sintomas de grande intensidade e intercorrências
noturnas. Neste caso a avaliação endoscópica é de vital importância.
Propedêutica complementar
a) Endoscopia
digestiva alta (EDA) com biopsia: é
o método de escolha para avaliar lesões na DRGE, permitindo avaliar a gravidade
da esofagite, e realizar biopsia onde e quando necessário. São consideradas
lesões: erosões, úlceras, estenose péptica e esôfago de Barrett.
Deve ser ressaltado que a
ausência de lesões na endoscopia não exclui o diagnóstico de DRGE, uma vez que
25 a 50% dos pacientes com a doença apresentam EDA sem alterações. Neste caso
estes pacientes são classificados de acordo com a pHmetria em: 1)doença do
refluxo não erosiva e 2) pirose funcional.
O achado acidental de
hérnia de hiato por endoscopia (ou radiológico) não deve ser necessariamente
diagnóstico de DRGE. Considera-se hérnia de hiato quando o pinçamento
diafragmático gera uma diferença ≥ 2cm com a linha Z .
Em resumo as principais
indicações para a realização da EDA são:
·
Excluir
outras doenças ou complicações da DRGE principalmente na presença de sinais de
alarme.
·
Pesquisar
a presença de esôfago de Barret em pacientes com sintomas de longa duração.
·
Avaliar
a gravidade da esofagite
·
Orientar
o tratamento e fornecer informações sobre a tendência de cronicidade do
processo.
Em relação a biopsia de
esôfago, as seguintes proposições são propostas:
·
Paciente
com ulcera e/ou estenose
·
Reepitelização
com mucosa colunar, circunferencial ou não, de extensão maior ou igual a 2cm,
acima do limite das pregas gástricas, na qual o diagnóstico endoscópico deve
ser enunciado como sugestivo de esôfago de Barrett.
·
Reepitelização
com mucosa colunar de extensão inferior a 2cm. O diagnóstico deve ser enunciado
como sugestivo de epitelização colunar do esôfago distal.
Obs. É importante
enfatizar a contra-indicação de biopsia em caso de fase aguda da esofagite
erosiva, sem ulcera, estenose ou suspeita de metaplasia colunar.
b) pHmetria
esofágica prolongada: permite
o diagnóstico de DRGE por demonstrar a presença de refluxo ácido
gastroesofágico anormal. A pHmetria está indicada nas seguintes situações:
·
Pacientes
com sintomas típicos de DRGE que não apresentam resposta satisfatória ao IBP e
nos quais o exame endoscópico não revelou dano à mucosa esofágica. Neste caso
realizar o exame na vigência da medicação (cerca de 10 dias).
·
Pacientes
com manifestações atípicas extra-esofágicas sem evidencia de esofagite.
·
Pré-operatório
nos casos em que o exame endoscópico não demonstrou esofagite.
Obs. A pHmetria prolongada
não se presta ao diagnóstico da esofagite de refluxo, mas sim do RGE em si.
Obs. O refluxo é
considerado patológico quando o pH intra-esofágico se mantém abaixo de 4 por
mais de 4% do tempo total de duração do exame.
c) Estudo
radiológico (REED): as
principais informações que o exame radiológico pode oferecer referem-se a
avaliação da anatomia esofágica, como nas lesões estenosantes do esôfago e
alterações motoras pelo achado de ondas terciárias e espasmos do órgão. A
indicação do método radiológico está restrita ao esclarecimento da disfagia e
odinofagia.
d) Exame
cintilográfico: apresenta
indicações restritas estando reservado para casos onde exista suspeita de
aspiração pulmonar de conteúdo gástrico, pacientes que não toleram a pHmetria
ou nos casos que exista necessidade de determinar o tempo de esvaziamento
gástrico.
e) Manometria
esofágica: destina-se
a investigar
·
Peristalse
ineficiente do esôfago em pacientes com indicação de tratamento cirúrgico, com
o objetivo de permitir ao cirurgião considerar a possibilidade de
fundoplicatura parcial.
·
Localização
precisa do EIE para permitir a correta instalação do eletrodo de pHmetria.
·
Presença
de distúrbio motor esofágico associado, com as doenças do colágeno e espasmo
esofágico difuso.
·
O
peristaltismo esofágico e alterações do tônus do EIE em pacientes com falta de
resposta adequada ao tratamento clínico ou cirúrgico.
d) Teste
terapêutico: pacientes
com menos de 40 anos com sintomas típicos (com frequência < 2 por semana) e
sem sinais de alarme podem receber como conduta diagnóstica inicial terapêutica
com IBP em dose plena (como alternativa utilizar BH2) por um período de 4
semanas. Devem simultaneamente serem promovidas ações comportamentais. Caso a
resposta após este período seja satisfatória ao teste nos permite inferir o
diagnóstico de DRGE.
Tratamento clínico
a) Tratamento
comportamento: ver tabela abaixo.
b) Tratamento
farmacológico
Inibidores da bomba de prótons (IBP):
é capaz de aliviar os
sintomas mais rapidamente e cicatrizar as lesões na maior parte dos pacientes.
A resposta inicial aos IBP é fator preditivo de sucesso do tratamento a longo
prazo. Estes medicamentos devem sempre ser ingeridos antes das refeições. O
controle dos sintomas atípicos é mais difícil que o dos típicos necessitando
frequentemente do uso de dose dupla de IBP. Os pacientes que não apresentarem
resposta satisfatória ao tratamento com IBP em 12 semanas devem ter a dose
dobrada por mais 12 semanas antes de serem considerados como insucesso
terapêutico.
Antagonistas H2: os antagonistas dos receptores H2
da histamina (ranitidina, cimetidina, famotidina, nizatidina) são drogas
seguras e bem toleradas, porem tem curta duração de ação (4 e 8h) e resultam em
inibição incompleta da secreção ácida. Consequentemente necessitam de múltiplas
doses para tratar DRGE. Alem disso, ocorre declínio da inibição da secreção acida
após duas semanas de uso do medicamento.
Procinéticos: só são uteis em pacientes com sintomas
dispépticos. Dentre os medicamentos disponíveis podemos citar a domperidona que
é um antagonista da dopamina e a metoclopramida que não é considerada boa
escolha diante de seus efeitos colaterais a nível de SNC.
c) Tratamento
cirúrgico: consiste
na recolocação do esôfago na cavidade abdominal, aproximação dos hilos
diafragmáticos (hiatoplastia) e envolvimento do esôfago distal pelo fundo
gástrico (fundoplicatura).
Complicações da DRGE
a)
Esôfago de Barret: é uma condição em que um epitélio
colunar associado à metaplasia intestinal substitui o epitélio escamoso normal
que recobre o esôfago distal. Trata-se, na grande maioria das vezes, de uma
sequela da DRGE de longa duração. A grande preocupação com essa entidade é a
predisposição gerada para adenocarcinoma.
b)
Esofagite erosiva: configura o grupo mais facilmente
identificável e com alterações fisiopatológicas mais claras. A visualização
endoscópica de erosões esofágicas sela o diagnóstico de doença do refluxo.
c)
Estenose péptica: a DRGE é responsável por 70% das
estenose de esôfago. O sintoma mais comum neste caso é a disfagia esofágica. Na
propedêutica destes pacientes geralmente utilizamos EDA e REED.
Semiologia do esôfago
As afecções esofágicas manifestam-se
por sintomas de um modo geral muito específicos, o que permite ao médico,
através de uma anamnese detalhada, estabelecer o diagnóstico correto na maioria
dos casos.
Os sintomas cardinais e quase
patognomônicos da doença esofágica são a disfagia e a pirose, resultantes de
distúrbios nas duas funções básicas do esôfago: a de transporte do bolo
alimentar da faringe ao estômago e a prevenção do refluxo gastroesofágico.
Disfagia:
significa dificuldade
para deglutir ou transportar o alimento até o estômago. Pode ser de dois tipos:
1) orofaríngea e 2) esofagiana.
·
Disfagia
orofaríngea: decorre
de anormalidades que afetam a atividade neuromuscular da musculatura estriada
da boca, faringe ou do EES. É de modo geral considerada um problema no início
da deglutição, devido a dificuldade de transferir o alimento da boca para o
esôfago proximal. Queixas: impactação
do alimento na garganta, regurgitação nasal e tosse durante a deglutição. Apresentação clínica: durante a
deglutição o paciente mantém a cabeça ereta, afasta os ombros para trás e eleva
o queixo na tentativa de facilitar a transferência do alimento da faringe para
o esôfago. Associação: disartria, astenia,
paresias, distúrbios do sono e déficit neurológico focal, doença de Parkinson, paralisia
cerebral, AVE, poliomielite dentre outros.
·
Disfagia
esofagiana: resulta
de vários defeitos estruturais ou neuromusculares que acometem a musculatura
lisa do órgão e o EIE. Queixas: incapacidade
de engolir o alimento que para após a deglutição. Apresentação clínica: muitas vezes o paciente indica com a mão onde
o alimento para. A disfagia esofagiana pode ser dividida em: 1) obstrutiva e 2)
motora.
Ø
Obstrutiva:
é causada por doença intrínseca ou extrínseca ao esôfago que diminui a luz do
esôfago impedindo a passagem do alimento. As principais afecções deste grupo
são os carcinomas e a estenose péptica do esôfago. No caso de carcinoma a a
disfagia é progressiva.
Ø
Motora:
causada por doenças que alteram a atividade peristáltica do corpo esofágico e/ou
junção do EIE, seja por lesão nervosa ou muscular. O megaesôfago é o principal
representante deste grupo.
Perguntas pertinentes na anamnese
|
Você tem dificuldade para iniciar a
deglutição? Indica disfagia orofaríngea.
|
O alimento “para” no trajeto para o
estômago? Indica disfagia esofagiana.
|
A dificuldade é para sólidos,
líquidos ou os dois? Sólido indica estenose. Para os dois indica distúrbio da
motilidade.
|
Na hora que o alimento para você o
regurgita ou consegue com um liquido faze-lo chegar ao estômago? Se regurgitar:
indica estenose/ Se consegue com líquido: sugere distúrbio motor decorrente
de alteração no peristaltismo.
|
A dificuldade de engolir vem
piorando com o tempo? Se piorou em um curto período de tempo: sugere
neoplasia maligna, se o período for longo é mais sugestivo de estenose
péptica resultante de esofagite de refluxo.
|
Odinofagia:
significa deglutição
dolorosa. Pode manifestar-se por queimação ou dor em cólica. Porem pelo fato de
ocorrer apenas durante a deglutição é distinguida facilmente de pirose. A dor
resulta muita das vezes do contato do bolo alimentar com uma lesão do esôfago.
Globus:
traduz uma sensação
de obstrução na garganta, que não interfere na deglutição e muitas das vezes se
alivia com ela. Ao contrário da disfagia nem sempre o globus está relacionado a
doença orgânica. Porem pode ser observado em DRGE, afecções na faringe, laringe
ou pescoço.
Pirose:
pode ser definida
como uma sensação de dor em queimação, localizada na região retroesternal, de
duração variável, podendo irradiar-se para abdome superior, garganta, regiões
anterolaterais do tórax e, menos frequentemente, para mandíbulas e mmss. Apresentação clínica: paciente espalma
sua mão sobre o esterno e movimenta-a entre o manúbrio e o apêndice xifoide. Predileção de horário do acometimento: ocorre
principalmente após as refeições principalmente aquelas copiosas e gordurosas. Fisiopatologia da pirose: 1) ação
nociva dos componentes do suco gástrico principalmente o HCl, que estimularia
terminações nervosas sensoriais da mucosa esofagiana e 2) espasmo da
musculatura esofagiana em resposta a agressão provocada pelo material refluído.
Regurgitação:
definida como a volta
do conteúdo gástrico e/ou esôfago à cavidade oral, não acompanhada de náusea,
vômito ou contração abdominal. Frequentemente ocorre associada a uma eructação,
ou outra manobra que aumente a pressão intra-abdominal. O gosto será amargo quando
o material conter bile e ácido quando vier do estômago. Quando ocorre pela
manhã em jejum é denominada pituíta. A regurgitação pode ser: 1) dinâmica ou 2)
estática.
Ø
Dinâmica:
decorrente de contrações espasmódicas do esôfago lançando o conteúdo para cima
Ø
Estática:
ocorre quando o paciente assume posição de decúbito e que está associada a
aspiração.
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